sábado, 23 de maio de 2009

— Sabe Eduardo? Estou chorando por sua causa: essa tristeza antecipada diante das fatalidades que a gente não pode mudar...

Seu rádio, pequeno e barato, só funcionava no banheiro, em cima do aparelho sanitário. Sem se preocupar em descobrir a razão, o velho escutava música sentado no bidê.
— Deve ser por causa do encanamento que serve de antena — explicou-lhe Eduardo um dia.
O velho Germano fitou-o longamente, desligou o rádio, levou-o para fora do banheiro:
— Por isso é que você não vai para a frente, meu filho. Entende as coisas demais, quer encontrar explicação para tudo. Era tão simpático da parte dele, só tocando onde bem entendesse. Então minha privadinha é uma antena? Você criou um problema para mim.
— Me desculpe.
— Não tem importância. A princípio eu achava que você fosse anjo, palavra. Custei muito a descobrir que não era.
— E por que não?
— Porque não tem asas. Você já viu anjo sem asas? A única coisa que anjo faz é voar: ir daqui para ali, dali para lá, feito um passarinho. O passarinho é um poema de Deus. Deus é poeta, você sabia? Qual, você conversa direitinho, sabe umas coisas, mas não sabe tudo não. Se sabe, me diga por exemplo: que é o pecado?
E o velho começava a folhear os Evangelhos com os dedos ávidos — um folheto gasto, esfacelado, em tradução portuguesa, distribuído gratuitamente.
— O pecado é tudo que Cristo não fez. Se você, por exemplo...
— Espere, espere. Não seja apressado. Isso que você falou tem coisa, pelo menos parece muito grave. Espere: é tudo que Cristo não fez... Olhe, vou até lhe servir um uísque. Você gosta de uísque?
— Gosto.
— Mas gosta mesmo? Olhe lá, hein?
Servia-lhe um uísque em dose medida rigorosamente:
— Você não é anjo mesmo não. Muito espertinho, discute comigo, toma meu uísque. O que nós estávamos falando? Ah, sim, o pecado: tudo que Cristo não fez? Não, está errado: isso é exagero, você está querendo ser mais cristão que o próprio Cristo. Cismático! Vá embora!
Não quero mais conversar com você.
No dia seguinte, porém, voltava a recebê-lo:
— Sabe de uma coisa, Eduardo? Estive pensando muito em você.
Seu erro fundamental é lembrar em vez de recordar. Há uma diferença entre lembrar e recordar; recordar é reviver, lembrar é apenas saber. O que é recordado fica, o que é lembrado é também esquecido.
— Kierkegaard já disse coisa parecida.
— Já vem você. Quem é esse? O jogador?
— Não: um filósofo dinamarquês.
— Ah! Eu estava confundindo com Friendenreich, aquele jogador de futebol. Pois se ele disse isso, ele é dos bons.
— Ele fala também nas “resoluções negativas”, essas que a gente toma e que em vez de nos suportar, nós é que temos de suportá-las.
O velho ficou pensando.
— É, isso é importante... — comentou afinal, balançando a cabeça: — Você veja, por exemplo, o problema do pecado: a grande dificuldade diante do pecado está em que para combatê-lo temos de tomar resoluções negativas. O homem resolve não pecar, isto é, negar alguma coisa que já existe, para recuperar sua condição original, que não existe ainda.

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