terça-feira, 5 de agosto de 2008

Formas que toma o sofrimento durante o sono


Três horas da manhã acabavam de soar, fazia cinco horas que andava daquele jeito, quase sem interrupção, quando deixou-se cair em uma cadeira. Adormeceu e teve um sonho.
Aquele sonho, como a maioria dos sonhos, não tinha ligação com a realidade a não ser por algo de funesto e pungente, mas o impressionou. Aquele pesadelo mexeu de tal forma com ele, que mais tarde o descreveu. E foi esta uma das coisas que deixou escritas de próprio punho. Julgamos dever aqui transcrevê-la textualmente. Qualquer que seja este sonho, a história dessa noite ficaria incompleta se o omitíssemos. É a sombria aventura de uma alma doente.
Ei-lo. No envelope encontramos escritas estas palavras: O sonho que eu tive naquela noite.
"Eu estava em uma campina, era uma campina grande e triste onde não havia vegetação alguma, e não parecia ser nem dia, nem noite.
Eu passeava com meu irmão; o irmão dos meus anos de infância, esse irmão em quem, devo dizer, nunca penso, e do qual quase não me lembro.
Conversávamos e encontrávamos outros passantes. Falávamos de uma vizinha que tínhamos antigamente, e que, desde que morava naquela rua, trabalhava sempre com a janela aberta. Ao mesmo tempo que conversávamos sentíamos frio por causa da tal janela aberta.
Não havia uma só árvore naquela campina.
Vimos um homem que passava perto de nós, completamente nu, cor de cinza, montado em um cavalo cor de terra. Esse homem não tinha cabelos; via-se seu crânio, e sobre este viam-se veias. Trazia na mão uma varinha flexível como vime e pesada como ferro. Esse cavaleiro passou por nós e não nos disse nada.
Meu irmão disse: 'Vamos pelo caminho de baixo'.
Havia um caminho mais baixo onde não se via nem um arbusto, nem um pingo de musgo. Era tudo cor de terra, até o céu. Após alguns passos, ninguém me respondia quando eu falava. Percebi que meu irmão já não estava comigo.
Entrei então em uma aldeia que avistei. Imaginei que devia ser Romainville (por que Romainville?).
A primeira rua em que entrei estava deserta. Entrei na segunda e, atrás do ângulo formado pelas duas ruas, vi um homem de pé, encostado na parede. Perguntei-lhe: que lugar é este? Onde estou? Mas o homem não me respondeu. Vi a porta de uma casa aberta e entrei.
O primeiro quarto estava vazio. Entrei em outro.Atrás da porta desse quarto havia um homem de pé. Perguntei a ele: de quem é essa casa? Onde estou? Mas o homem não me respondeu.
A casa tinha um jardim. Saí da casa e entrei no jardim, que estava deserto. Por trás da primeira árvore encontrei um homem que estava de pé. Perguntei a ele: de quem é este jardim? Onde estou? Mas o homem não me respondeu.
Percorri a aldeia, e percebi que era uma cidade. Todas as ruas estavam desertas, todas as portas estavam abertas. Nenhum ser vivo andava pelas ruas, pelos aposentos ou passeava nos jardins. Mas em cada canto, por trás de cada porta, por trás de cada árvore, havia um homem de pé e calado. Não se via mais do que um em cada lugar, e todos olhavam para mim quando eu passava.
Saí da cidade e me pus a caminhar pela campina.
Daí a algum tempo, voltei-me e vi que uma grande multidão vinha atrás de mim. Reconheci todos os homens que tinha visto na cidade; tinham umas cabeças estranhas. Não pareciam vir depressa, no entanto caminhavam mais rápido que eu. Não faziam barulho algum ao andar. Num abrir e fechar de olhos, aquela multidão alcançou-me e cercou-me. Os rostos daqueles homens eram cor de terra.
Então, o primeiro que eu vira e interrogara quando entrei na cidade disse-me: 'Aonde vai? Não sabe que já morreu há muito tempo?'
Abri a boca para responder e vi que não havia ninguém à minha volta."

Acordou. Estava gelado. Um vento frio como a aragem da manhã fazia girar em seus eixos os caixilhos das vidraças que ficaram abertas. O fogo e a vela quase toda gasta. Era ainda noite fechada.
Leventou-se e foi até a janela. O céu continuava sem estrelas.
De sua janela avistava-se o pátio da casa e a rua. Um ruído seco e duro, que ressoou de repente no chão, fez com que abaixasse os olhos. Viu, abaixo dele, duas estrelas vermelhas cujos raios se alongavam e encolhiam estranhamente no escuro.
Como seu pensamento estava ainda meio submerso em uma atmosfera de sonhos, pensou?
-Oh! Não tem estrelas no céu; agora elas estão na terra.
No entanto aquela pertubação dissipou-se, e um segundo ruído, semelhante ao primeiro, acabou de despertá-lo; olhou e reconheceu que as duas estrelas eram as lanternas de uma carruagem. Pela claridade que lançavam pôde distinguir a forma da tal carruagem. Era um tílburi puxado por um cavalo branco. O ruído que ele ouvira vinha das patas do cavalo batendo no calçamento da rua.
-Que carruagem é essa? - disse consigo. - Quem é que vem a essa hora da noite?
Nesse momento, bateram de leve na porta de seu quarto. Ele estremeceu da cabeça aos pés.
- Quem está aí?
Alguém respondeu:
- Eu, senhor prefeito.
Ele reconheceu a voz da velha zeladora.
- E então - tornou ele -, o que há?
- Logo serão cinco horas da manhã, prefeito.
- E que tenho eu com isso?
- Senhor prefeito, é o cabriolé.
- Que cabriolé?
- O tílburi.
- Que tílburi?
- Então o senhor não tinha encomendado um tílburi?
- Não - disse ele.
- Mas o cocheiro pergunta pelo senhor prefeito.
- Que cocheiro?
- O cocheiro do senhor Scaufflaire.
- Senhor Scaufflaire!
Esse nome o fez estremecer como se um raio tivesse passado diante de seus olhos.
-Ah! Sim! - tornou ele. - O senhor Scaufflaire!
Se a velha pudesse vê-lo naquele momento, ficaria espentada.
Houve um longo silêncio. Ele examinava com ar estúpido a chama da vela, e, da volta do pavio, tirava um pouco de cera quente que embolava nos dedos. A velha esperava, mas, passado algum tempo, aventurou-se ainda a levantar a voz:
- O que devo responder, senhor prefeito?
- Diga que está bem, que já estou indo.

Victor Hugo, Os Miseráveis vol.1, Livro VII "O Caso Champmathieu", cap. IV

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