domingo, 20 de julho de 2008

Vestígios



7 de novembro de 1998

"Estamos enfrentando alguém que não é normal... tanto física, quanto mentalmente. E é o aspecto mental que me preocupa... porque, pra desvendar esse caso... vou ter que entrar na cabeça desse maluco... pensar como ele... e isso me assusta."
Eu disse isso. Disse há um ano e nada mudou. Ainda é verdade. Continuo assustado. Dietilamida de ácido lisérgico: a dose padrão é cerca de duzentas microgramas, mas como eu peso isso? Dizem que a menor quantidade pode alterar tudo... o mais tênue resíduo. Eu nunca vi os campos antes, só fotografias. Então, esta é a privada onde a gente jogava todas aquelas pessoas...
Quatro tabletes. Eu me pergunto se é o bastante... se é demais! Muito bem. Parecem pedaços de sabão sobre minha língua...a saliva com gosto de papel-alumínio...uma bolha de apreensão se formando no estômago... e engulo sentindo como se me livrasse de alguma coisa. Pronto. Agora, estou acorrentado. A contagem regressiva das entranhas pra circulação, e desta pro cérebro, rumo à decolagem. Mas eu nunca voei antes. O que é pra acontecer? Nada. Nada ainda. É melhor olhar ao redor enquanto ainda é dia.
Estes devem ser os fornos. Fornos pra pessoas. Fornos pra gente. Não adianta. Ainda não parece real. Se soubesse que isso estava acontecendo, eu teria me filiado ao partido? Talvez. Não havia melhor alternativa. Não podíamos permitir que o caos depois da guerra continuasse. Qualquer sociedade é melhor que aquilo. Precisávamos de ordem... ou, pelo menos, eu precisava. Perder Cynth e o pequeno Paul daquela maneira. Tudo estava desintegrando e eu só queria...eu...
- Urrgh!
Eu não devia ter feito isso. Eu não devia ter tomado LSD. Não aqui.
Mas eu queria saber... saber o que é ser como ele... é este lugar. Se eu puder ficar fora até me sentir melhor... é fácil. O portão principal fica logo ali...
Não dá. Não dá pra andar tanto. Minhas pernas parecem gelatina e tudo está retumbando...retumbaaaaannnnnndooooooo...
É a droga. Tenho de lembrar que a droga está fazendo isso, mas... mas dizem que o LSD só intensifica o que já existe! Meu Deus, por que fiz isso justo agora, quando estou tão confuso?
Estou preso num trabalho que me pertuba, mas não pude falar isso pra ninguém. Estou sozinho... tão sozinho.
Oh. Olha... olha! Eles estão sorrindo. Todos estão tão felizes. Meu Deus. Faz tanto tempo... eu tinha esquecido como era variada a cor de suas peles. Milhares de tons de café... as moças que eu via se abraçando nas demonstrações, e os homens tão delicados e de fala macia...
Meu Deus! Que saudade de vocês! Senti falta de suas vozes, do seu caminhar, suas roupas, suas comidas, seus cabelos tingidos de rosa. Meus amigos... no Carnaval, nas passeatas gays. Digam que me vêem além do uniforme. Digam que sabiam que eu me importava. Espere...aonde vocês vão? Por favor... não me deixem!
Nós tratamos vocês tão mal... as coisas odiosas que escrevemos, fizemos, dissemos... por favor, não nos odeiem. Nós fomos burros. Nós éramos crianças. Não sabíamos. Voltem, por favor. Voltem.
- Amo vocês... ahuh. Ahuhuhuh... eu amo vocês...
- Oh, Eric! Você ainda está de pijama! Volte pra cama! Estou preparando ovos com bacon pra gente!
- Delia? Delia, estou tão confuso! Se ao menos pudesse endireitar as coisas...
- Que coisas?
- O que está acontecendo comigo? Eu lembro que vim aqui pra descobrir alguma coisa... algo vital pra várias venturas. Eu pretendia toma uma droga...
- Uma droga? É exatamente o que tenho aqui. Por favor, arregace as mangas... quanto a seus problemas emocionais, talvez você devesse falar com Tony Lilliman. Ele é o nosso padre.
- Lilliman? Pensei que ele fosse um bispo!
-Não. Apenas um peão. Agora, me diga... quando você deixou de acreditar em Deus?
-M-mas... eu não disse...
-Não paparica esse viado! Não tem nada de errado com ele que um bom veneninho não cure!
-Hmm. Talvez tenha razão! Segundo minha experiência, o veneno resolve a maioria dos problemas da vida. Já terminei, Sr. Prothero ele é todo seu.
-O quê? Delia, eles estão me levando embora! Não deixe...
-Vem cá, panaca! Não me irrita!
-Delia? Delia, e nossos ovos com bacon?
- In nomini patri, et filli, et spiitus sancti...
- Delia, por favor! Você não era como eles! Eu sei que não era! Você tinha coração! Por favor, não deixe que façam isto! Delia, você está ouvindo? Eu... oh, não. Huugh...
Como? Como cheguei aqui, a este lugar fétido... ao meu trabalho... à minha vida... à minha prisão... as respostas estão aí, escritas no chão para serem lidas, mas eu não compreendo. Deve ser efeito da droga, mas... mas ele estava drogado também, trancado pra morrer. Mas compreendeu.
Por que não eu? Olho pra esses padrões insanos, mas onde estão as respostas? Quem me aprisionou aqui? Quem me mantém aqui? Quem pode me libertar? Quem está controlando e restringindo minha vida, a não ser...
-...eu? Eu... estou livre. Liiiiivreee!
Voltando a viver, virando, vomitando valores que me vitimizam, vivendo o vasto, virginal... será que ele se sentiu assim? Esta verve, esta vitalidade...esta visão!
La voie... la vérite... la vie.*

Detetive Eric Finch

*a estrada, a verdade a vida.

Allan Moore & David Lloyd em "V de Vingança", Tomo 3 "A Terra do Faça-O-Que-Quiser", cap. 4

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